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História nº 14: O que será que aconteceu com o Joji?

Fazia mais de vinte anos que eu não voltava à minha cidade natal. Eu tinha ido a trabalho para uma cidade próxima, e, apesar de estar bastante ocupado, resolvi ir até lá.

De fato, a cidade estava bastante mudada, mais do que havia imaginado quando ouvia falar dela nesse tempo todo que passou. Fiquei assustado, além de ter lamentado o fato. A rua principal, antes movimentada e cheia de vida, resumia-se a poucas lojas funcionando e estava deserta. A padaria onde eu costumava comprar pão doce quando menino agora era um bar e foi onde entrei para tomar um cafezinho.

Meu pai tinha um comércio nessa rua, mas por causa do meu irmão mais velho que ia fazer faculdade, a família toda se mudou para São Paulo.

Na época, eu havia terminado o ensino fundamental e senti muito ter de me separar dos meus amigos de infância. E justamente nessa época havia começado o movimento de nikkeis indo trabalhar no Japão como decasségui: dois dos meus amigos já estavam lá acompanhando os pais. O outro amigo ia estudar num colégio da cidade vizinha. Havia restado apenas o Joji, um dos caras mais honestos e habilidosos que conheci.

Já que estava revendo a minha cidade natal, eu fazia questão de me encontrar com o Joji. E nesse longo tempo nós nunca havíamos trocado correspondência. Tudo porque nós dois odiávamos escrever, tanto que chegamos a cabular as aulas de redação.

A família do Joji era de agricultores e a casa se localizava longe do centro. Não sabia se encontraria o Joji, mas pelo menos com seus pais eu esperava me avistar. No caminho, ao passar no meio de uma praça, vi um homem que vinha andando em minha direção e, por um instante, pensei ser o Joji.

- Ei! Joji! – exclamei, mas esse homem nem me viu e passou por mim. Era alto e estava usando suspensórios, o que achei um pouco estranho.

- Não, não pode ser. Aquele Joji usando suspensórios? Nem pensar! – e continuei meu caminho.

Quem abriu a porta foi a mãe do Joji, já com os cabelos branquinhos.

- Boa tarde. Lembra-se de mim?Sou o Teruaki, da quitanda...

Do meu nome ela não se lembrava, mas a palavra “quitanda” remeteu-a aos tempos em que eu ajudava meu pai a descarregar as verduras.

A mãe do Joji ouviu as notícias sobre meus pais e meus irmãos com saudades e, logo após, quando lhe perguntei do seu filho, ela abaixou o tom de voz, parecendo não saber como continuar a conversa.

Nisto, alguém abriu a porta da frente e entrou. A senhora levantou-se de imediato e disse: “É um amigo seu”.

Foi então que eu vi aparecer na minha frente, justamente o homem que passou por mim na praça!

- Joji! Mas então é mesmo o Joji! – adiantei-me para cumprimentá-lo, mas Joji não esboçou reação e foi para os fundos.

Fiquei atônito pensando no teria acontecido com ele, ao mesmo tempo em a sua mãe ia atrás para trazê-lo de volta à sala. E começou a falar para o filho tudo o que pudesse fazê-lo se lembrar de mim.  

Joji permaneceu sentado com as pernas cruzadas e balançando o pé direito sem parar. Em nenhum momento olhou para mim e também parecia não prestar atenção às palavras de sua mãe.

Eu não sabia o que dizer e, olhando para a mesa ao lado, vi sobre ela um pião de madeira. Na mesma hora peguei-o e convidei o Joji: “Que tal?”

Joji se levantou e nós dois começamos a rodar pião. Era como se tivéssemos voltado aos tempos de criança, nos divertimos muito. Mas em nenhum momento nós chegamos a conversar.

Despedi-me deles de tardezinha e fiz mais uma visita antes de retornar a São Paulo.

Nesse dia, o Joji tinha ido à cidade vizinha para continuar seu tratamento num grande hospital. A sua mãe contou um pouco sobre os acontecimentos recentes na vida de Joji: ele se casou aos quarenta anos e, logo depois, foi ao Japão como decasségui, junto com a esposa e uma enteada. Depois de quatro anos, Joji ficou doente e voltou sozinho ao Brasil. A esposa e a enteada permaneceram no Japão e, depois de certo tempo, não mandaram mais notícias e a saúde de Joji foi piorando cada vez mais.

Era a primeira vez que estava vendo tão de perto a situação de alguns decasséguis.

Anteriormente, eu estava na Liberdade, conhecido como bairro com concentração de orientais, quando vi um jovem com vestes esfarrapadas que andava a esmo gritando em japonês. Segundo os balconistas das lojas era um decasségui que não tivera sorte no Japão. Ao ouvir isto, confesso que fiquei com muita pena.

O decasségui tem diversas razões para ir trabalhar tão longe, e viver num país com costumes diferentes dos nossos não deve ser fácil. Não sei por quais provações passou o Joji no Japão, mas tenho fé que ele vai se recuperar.

Até isto acontecer, quero estar por perto. Vou lhe fazer mais visitas. Na próxima, podemos ir pescar, que tal? Como nos velhos tempos...

 

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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