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História nº 4: Saudade

Kimiko estava um dia ajudando na mudança do filho, quando encontrou algo inesperado. Dentro de uma gaveta, bem no fundo, estava uma lata. Era uma lata dos “Biscoitos Duchen” que quando criança só podia saborear de vez em quando. Ficou com muitas saudades daquele tempo, mas ela não se lembrava de ter esquecido na casa do filho. Mesmo assim, por que Alex estaria guardando-a com tanto zelo? Ficou curiosa para saber o que a lata continha.

Nisto, o neto Marco veio chamá-la: “Batchan, vamos logo”. Era dia de mudança, então iam todos comer fora. Kimiko aproveitou e falou da lata de biscoitos. Ao que o filho respondeu: “Pode jogar fora. É bugiganga mesmo. Para a casa nova não quero levar coisas velhas”. 

Mas Kimiko não se convenceu e, antes de jogar fora, resolveu abrir a lata de biscoitos como se fosse uma caixa de tesouros.

Viu que eram fotografias. “Ah, o papai! O chapéu e os óculos de aro dourado eram a sua marca registrada. Ao seu lado, sorridente, o Carlos. E foi pouco depois que aconteceu o acidente com ele...”. Lembrar do filho mais velho que havia partido para sempre era ainda doloroso. Havia fotos do falecido marido também. Seu filho, que estava chegando aos 40, cada vez mais parecendo com o pai. E ela deu graças a Deus porque Alex era diferente do pai, ele olhava as coisas por um prisma positivo.

E embaixo de tudo havia 3 cartas. Eram cartas que Kimiko havia enviado aos filhos nos tempos de decasségui. Eram o testemunho dos laços que ela havia mantido nos 2 anos que esteve longe deles, de 1988 a 1990. Como tinham ficado longos anos dentro da lata de biscoitos, eram lembranças que exalavam um doce perfume. Imagine jogar fora um tesouro desses.  

* * * * *

12 de setembro de 1988

Érica, tudo bem com você?

Já passou meio ano desde que cheguei ao Japão. Passou rápido. Claro que toda vez que penso em vocês fico com vontade de voltar, mas fazer o quê, eu vim com um objetivo né?

O serviço não é tão duro como a minha irmã dizia. Eu cuido só de gente idosa, às vezes fico impaciente, mas também tem coisas boas. Outro dia, a filha da Nakayama-san me trouxe um bolo delicioso.

Nas horas de folga fico vendo televisão no alojamento. Tem muitas coisas que não entendo muito bem, mas eu gosto de ver as cantoras usando roupas bonitas e paisagens também bonitas. 

Teve um dia que passou um documentário sobre o Brasil mostrando as favelas do Rio e os meninos de rua da Praça da Sé em São Paulo. No dia seguinte, uma enfermeira lá do hospital me perguntou se aquilo era verdade e eu fiquei com tanta vergonha que acabei respondendo: “Eu não vi”.

Mudando de assunto, por que você largou o emprego de meio período? Estou bastante preocupada porque você desde criança nunca foi persistente. Mas por favor, não desista dos estudos. 

E como você está na tia Terê, acho bom ajudar na casa.

Tem mais: será que o Alex está se alimentando direito? Fico preocupada porque ele só gosta de hambúrguer e coisas parecidas.


Então até outro dia.

                                                            Mãe

* * * * *

20 de novembro de 1988 

Para Érica e Alex

Como vão todos? Eu continuo firme.

Por aqui ainda é outono, mas de manhã cedo e à noitinha sinto o ar frio. A temperatura é como se fosse o inverno no Brasil. Aí deve estar quente pois o verão está chegando, né? Tenho saudades.

Quando estou de folga no hospital tenho trabalhado pegando serviço fora. Comecei por indicação da enfermeira Mori-san.

Na semana passada cuidei de um menino que estava acamado com gripe. Como a mãe dele não podia faltar ao serviço, o menino ficou sozinho em casa. Tinha febre alta e sem vontade de comer nada. Foi aí que eu fiz o mingau de maisena que eu fazia pra vocês e ele aceitou bem. E dei graças a Deus porque quando vocês eram pequenos a nossa vida não estava fácil, mas eu pude ficar perto cuidando direitinho de vocês.

Algumas vezes fui trabalhar na casa de um senhor que morava junto com a família do filho. O jitchanzinho tinha machucado o pé e não podia andar, então me pediram para cuidar dele na hora do banho e dos cuidados pessoais. A nora estava sempre na casa, mas não fazia nada por ele. Ficava vendo televisão ou conversando ao telefone. O velhinho parecia tão triste...

Estive na casa de uma batchanzinha também. A primeira vez que a vi foi no hospital. A gripe dela tinha piorado e ela estava internada com pneumonia.

No caminho para a casa dela eu fiquei preocupada, pensando no que teria acontecido. Mas ela me recebeu com um sorriso no rosto. Entrando na sala, havia um pequeno bolo na mesa. A batchanzinha me ofereceu uma cadeira e disse: “A Momo-tchan está pra chegar, então vamos esperar”.

Eu não estava entendendo nada e nem me sentei. Nisto, tocou a campainha e eu fui atender. Era uma linda menina, a Momo-tchan. 

A batchanzinha recebeu Momo-tchan com carinho e a menina, meio sem jeito, entregou-lhe uma folha de papel. A batchanzinha pôs o papel sobre a mesa com cuidado e ficou olhando, muito feliz. Era um desenho feito pela menina. No meio de uma porção de flores estava a batchanzinha, sorridente, com a boca pintada de vermelho.

A batchanzinha ofereceu um pedaço de bolo para mim e para Momo-tchan.

Aí uma voz se ouviu vindo de fora: “Volte logo, não pode ficar amolando a avozinha” e a menina saiu correndo.

Algum tempo depois que fiquei sabendo a história dessa senhora: ela morava junto com o filho casado. Dois anos atrás, quando o seu filho, a nora e a neta de 5 anos estavam a caminho da casa dos pais da nora, sofreram um acidente e os três vieram a falecer. Desde então, ela vive sozinha e não se sabe desde quando ela passou a tratar a menina da vizinha como se fosse sua própria neta.  

Depois que conheci pessoas como esse jitchanzinho e a batchanzinha, eu comecei a pensar muito. Será que para viver só o dinheiro que importa? Claro que sem dinheiro não dá pra levar a vida, mas se não existir o “Amor”, que coisa triste que é.

Peço que esperem por mim. Trabalhem, também estudem e nunca percam as esperanças, por favor. A Érica e o Alex são meus tesouros. Agora estamos vivendo muito longe um do outro, mas somos uma família. Uma família preciosa. Quero que nunca se esqueçam disto. Amo vocês!

                                                            Mãe

* * * * *

4 de março de 1990

Para Alex

Hoje foi meu último dia no hospital.

Eu não esperava nada de especial, mas até festinha de despedida fizeram. Ganhei ramalhete de flores e doces. Despedi-me de todos e quando estava saindo do hospital, a “Boss” veio correndo atrás de mim. A “Boss” é a chefe das enfermeiras e nesses 2 anos pensava que ela não gostasse de mim, mas hoje ela me pareceu outra pessoa. Ela disse: “Se tiver oportunidade, venha novamente. O nikkei brasileiro é honesto, trabalhador e o Japão precisa de gente como vocês”, e ela até me deu um presente. De tão emocionada que fiquei, meus olhos lacrimejaram e nem deu para ver direito o rosto da “Boss”.

Nem acredito que fiquei aqui 2 anos. Parece que foi um longo tempo, parece que passou depressa, importante que foi um tempo muito proveitoso.

Estou ocupada com os preparativos. Como acho que não vou voltar mais, gostaria de ir visitar a terra do seu avô, mas como não temos mais nenhum parente aqui, estou em dúvida se vou ou não vou.

Mudando de assunto, é verdade que você não vê a Érica há mais de um ano?Estou muito preocupada. Que a tia Terê se casou com alguém 12 anos mais novo e está curtindo a nova vida estou sabendo, mas a Érica até então não estava com ela?Não consigo entender como pôde dizer que nem sabe o paradeiro dela. Bem, quando chegar ao Brasil quero pôr tudo em pratos limpos.

Quando vejo pais e filhos se dando bem, fico até com inveja. Semana passada, a Nakayama-san e sua filha vieram me visitar. As duas tinham ido a Hong Kong fazer compras e me trouxeram de presente uma bolsa maravilhosa e uma blusa. A filha Emi parece mais jovem e deu para conversarmos bastante. Ela vai se casar em junho próximo e, quando souberam que nessa época já estarei no Brasil, mãe e filha ficaram tristes. Para mim também é uma pena. Pelo menos uma vez eu queria assistir a uma cerimônia de casamento no Japão.


Por hoje é só. Vamos continuar a conversa no Brasil.

Até o dia 11, às 5 da manhã em São Paulo.

                                                            Mãe

* * * * *

Decasséguis tão longe de casa
Famílias unidas por um ALÔ
... não estou ouvindo... ALÔ
Palavras & Sentimentos não se completam
Suor e lágrimas na frente de luta
Avante   minha gente
Rápido     Rápido     Rápido
Quero voltar  Depressa  Quero te ver

Não existe palavra igual no mundo
S   A   U   D   A   D   E

 

© 2012 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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