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História nº 3: A hora e a vez de Massao

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                                                          I

Massao era bem pequeno quando perdeu o pai. Estava trabalhando na lavoura, quando de repente perdeu os sentidos e ali mesmo veio a falecer. Depois, foi com muito sacrifício que a sua mãe criou os 5 filhos, tendo o mais velho e as filhas se casado e  ficando só a mãe e ele, que era o caçula da casa.

A mãe vendia verduras na feira e Massao começou a ajudá-la quando estava com 15 anos. Eram dias felizes que ele ainda guarda na lembrança. A rotina deles era chegar na feira às 5 da manhã, armar a barraca e dispor as verduras viçosas debaixo da tenda. Massao adorava a feira. Ficar debaixo do imenso céu ouvindo o refrão dos feirantes misturado aos alegres cumprimentos da freguesia e vendo o colorido da variedade de frutas e legumes era bom demais! E, mais do que tudo, ele gostava de ver a sua mãe com um sorriso no rosto.

O tempo foi passando e cada vez mais estava difícil abastecer a barraca, tanto que sua mãe caiu doente. Massao trabalhou duro no lugar dela, mas a vida só piorava, com tudo subindo de preço e o Brasil entrando em recessão. No noticiário começou-se a falar em “crise econômica”.

Massao ouvia falar que os amigos da mesma idade, colegas da feira e famílias da vizinhança estavam todos se preparando para ir trabalhar no Japão e isso o deixou surpreso.

Quando soube que seu irmão Takao também partiria levando a família, quis pedir para ir junto, mas antes que pudesse falar, o irmão antecipou-se, dizendo-lhe “Cuide da mãe, te peço”.

“É, não devo ir, preciso ficar cuidando da mãe”, conformou-se Massao. Sua mãe precisava tomar medicamentos por causa da pressão alta e não estava mais indo trabalhar na feira. Ficava em casa fazendo panos de prato e aventais, que pedia para deixar no canto da banca. Também fazia makizushi e tsukemono, que vendiam muito bem.

Massao estava com 31 anos de idade e continuava solteiro. Começou a fazer um curso profissionalizante à noite, porque um dia queria deixar a feira e trabalhar consertando carro.

Num certo domingo, Massao voltou tarde da noite e disse de súbito: “Vou ser decasségui”.

A mãe, que estava no quarto fazendo seus trabalhinhos, ficou atônita. Perguntou várias vezes o motivo, mas o filho apenas reafirmava que iria trabalhar no Japão.

O próprio Massao não estava entendendo direito por que insistia nisso. A cabeça dele estava a mil.

Acontece que, na tarde desse mesmo dia, retornando da feira, Massao vestiu uma roupa melhor e foi à casa da Mari. Ele e Mari eram amigos de infância e fazia 4 anos que Mari estava em São Paulo estudando para ser enfermeira. Quando chegavam as férias de verão, ela retornava à casa dos pais e ia junto com Massao ao Kaikan para se divertir no karaokê ou no pingue-pongue.

Mas nesse dia Mari atendeu à porta sem o sorriso de sempre. Desculpou-se de que teria de sair com os pais e foi para dentro. Massao ficou decepcionado e ia embora, quando o pai de Mari apareceu e disse: “A Mari vai se casar logo e vai ser com um rico, diferente de você”.

Nem ele mesmo sabe quanto tempo ficou andando a esmo. Estava ficando escuro, as pessoas apressando a volta para casa, mas Massao não estava com a menor vontade de fazer o mesmo.

Entrou no bar da esquina e pediu pinga, justo ele que não era de beber. Com o copo na mão gritava: “Vou pro Japão e vou ser rico”.

O casal de jovens na mesa próxima nem deu atenção. Os homens que assistiam ao “Fantástico” sem tirar o olho da tela nem ouviram.

Apenas uma mulher que estava nos fundos ouviu e mostrou interesse. Estava preparando coxinha na cozinha mal iluminada, mas largou e veio correndo e pôs mais pinga no copo.

“Meu nome é Núbia” disse-lhe, mas Massao nem ouviu, debruçado na mesa sob o efeito do álcool.

Até bem pouco tempo, Núbia nem sabia que existia um lugar chamado Japão. Morava no interior do Ceará, quando soube que uma prima de São Paulo havia se casado com “japonês” e ia para o Japão. Depois de 5 anos, essa prima voltou de férias trazendo o filhinho, vestindo roupas bonitas e carregando um montão de presentes interessantes, deixando todo mundo embasbacado.

Pouco tempo depois, Núbia foi morar na São Paulo dos sonhos. Era para ajudar o irmão que tinha aberto um bar. E meio ano havia se passado quando aconteceu de conhecer Massao. 

Estranho encontro esse, de Núbia, doida para conhecer o Japão, e de Massao, doido para ficar rico no Japão.

II

Massao apressou os papéis do casamento. Porque se não, Núbia não poderia ir ao Japão como decasségui.

E a nova vida no Japão estava indo bem, melhor do que se esperava. Massao era caladão, mas graças à espontaneidade de Núbia os colegas da fábrica tinham acolhido os dois muito bem.

Logo nasceu o filho Mateus e Massao sentia-se o homem mais feliz da face da Terra. Enviava todos os meses um dinheiro para a sogra, dona Iracema, pois ela sofria de doença grave, segundo o que Núbia havia lhe contado.

Núbia e a mãe se falavam frequentemente ao telefone. Certa vez, a sogra ligou numa hora em que Núbia estava ausente.

- Massao, quanto tempo!
- E a saúde, como vai?
- Cada vez melhor.
- Foi bom saber. Mas a senhora continua tomando os remédios, não?
- Graças a Deus que cheguei nesta idade sem nenhuma doença.
(...)
- Alô! Está me ouvindo?

Massao entrou em parafuso.

- Eu queria te agradecer, Massao. Porque o Natal deste ano vai ser uma alegria só. Com aquele dinheiro comprei uma bicicleta e até um computador para o Lucas.
- Lucas, aquele seu outro neto?
- É. Ele diz que quer muito conhecer o Mateus, pois é seu irmãozinho querido!
(...)
- Alô!Alô!

Massao largou o fone e saiu de casa.

III

“Bem que eu te avisei... Casar assim de repente com umazinha que apareceu não se sabe de onde... Cê foi mesmo um idiota, hein?!”

O irmão Takao estava furioso. Era a segunda vez que eles estavam se vendo no Japão. Tempos atrás, quando foi a serviço para os lados de Gunma, ele tinha ido visitar Massao. E agora, o Massao que nem ao menos telefonava, aparece bem na sua frente. Teve um mau pressentimento.

Mas, à medida que ia ouvindo o que Massao tinha para contar, a raiva foi desaparecendo, o semblante foi desanuviando. Sentiu-se responsável pelo irmão bem mais novo que ele. “É meu único irmão, cuidou muito bem da nossa mãe, o que estiver ao meu alcance eu quero fazer por ele”, pensou resoluto.

Agora morando em outra cidade, Massao começou a trabalhar numa fábrica de automóveis. Pela primeira vez na vida sentia que estava dando duro. Nem tinha comparação com a vida de feirante. “Estou igual a uma máquina”, chegou a pensar muitas vezes, mas a verdade é que ele se esforçava.

E relembrando as palavras que sua mãe dizia sempre – “O que você começou tem que finalizar” - , Massao procurou dar o máximo de si.

O salário ele enviava religiosamente à Núbia. E meio ano depois, com o dinheiro emprestado pelo irmão, ele conseguiu mandar Núbia e o filho de volta para o Brasil. 

Núbia, que o havia enganado tão bem, acabou se saindo mal. A mentira sobre a mãe doente e o fato de ter omitido que tinha um filho com outro homem vieram à tona e não deu mais para continuar. “Japonês é tudo bonzinho”, pensava confiante, mas se surpreendeu com a reação de Massao: “Nem quero ver a tua cara, vai embora. Mas se alguma coisa acontecer com o Mateus, vai se ver comigo”.

Ele não queria de forma alguma separar-se do filho, mas não teve outro jeito.  Mas tinha intenção de um dia voltar ao Brasil para reaver o filho. Queria viver junto com ele no Japão.

Com fé de que esse dia chegue logo, resolveu encarar as coisas de frente. Procurou esquecer tudo de ruim que tinha acontecido e mergulhou no trabalho. Sabia que teria um longo caminho pela frente, mas ele estava cheio de esperanças.

Finalmente havia chegado a hora de Massao alçar voo. 

© 2012 Larua Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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