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História nº 6 (Parte I): Que é de “Mayumi”?

Logo de manhã cedo, a jovem andava pela cidade carregando uma cesta com ambas as mãos.

Sentou-se no banco do jardim para uma breve pausa. Olhou para o céu e viu nuvens carregadas avançando para um lado e sentiu que estava sendo levada junto para algum lugar. Olhando para o chão, folhas secas se acumulavam e se estendiam como um tapete, parecendo mostrar a direção a seguir. “Com certeza, estou sendo conduzida para o caminho correto” - dizendo isto, levantou-se e segurando a cesta com muito cuidado, atravessou o jardim.  

O céu escureceu novamente e estava prestes a chover. Soprou um vento forte e frio e a jovem apressou o passo. Continuou caminhando, certificando-se de que a cesta estava protegida. Veio a chuva de uma pancada só e em instantes ela ficou encharcada. Havia respingos de água no lado de fora da cesta.

Estava caminhando por uma rua ainda deserta e, de repente, parou na frente de uma casa. O muro que dava para a rua estava enfeitado com muitas flores. Ela ficou observando as delicadas e pequeninas flores de um rosa suave, amarelo e branco e pareceu um pouco mais tranquila.

Mas logo em seguida teve um gesto inesperado. Foi entrando e dirigindo-se para a entrada da casa. Parou perto da porta e depositou ali a cesta. Em seguida, olhando várias vezes para trás e sussurrando algo, deixou o local.

Nessa manhã, o pastor Makoto, que todo dia já estava em pé às seis, parecia mais atarefado que nunca. Enquanto assistia ao noticiário da televisão, punha a mesa para o café da manhã e ainda por cima falava ao telefone.

Quando morava no Brasil ele apenas servia na igreja, mas no Japão, além do serviço pastoral, trabalhava numa seção da prefeitura local. Como era uma região onde havia muitos decasséguis, ele servia de intérprete em português e fazia traduções de documentos. Era uma rotina atribulada, mas estava muito grato a Deus.

Mas essa manhã era especial. Depois de 3 meses do último tufão, um outro estava se aproximando da localidade e ele precisava entrar em contato com um grande número de pessoas. Tinha que avisar os brasileiros e peruanos que mal entendiam o japonês sobre o tufão e também precisava se certificar se as pessoas idosas do bairro estavam em segurança.

Sua esposa Tomoe encontrava-se no andar de cima da casa preparando o quarto para receber três crianças que ela cuidava durante o dia. Eram filhos de nikkeis, que não se haviam adaptado às creches japonesas e por isso ela havia se encarregado de tomar conta.

E prevendo a hora de as crianças chegarem, abriu a porta e deu com uma cesta bem na frente. Imediatamente chamou o marido e, juntos, chegaram mais perto. Nisto, ouviu-se um choro. E de dentro da cesta apareceu um tecido branco. No momento seguinte, a cesta balançou!

Com muito cuidado o pastor segurou a cesta e levou-a para dentro. Tomoe, que não era de se assustar com qualquer coisa, estava completamente sem fala.

Ao abrir por completo a cesta, dentro estava um bebezinho vestindo um macacão branco. Deu a impressão que havia chorado um pouco antes, mas agora estava no meio de um sono bem gostoso.

“Por que motivo este pequenino ser teria vindo a nossa casa?” – virou-se para o marido e este pegou a criancinha e entregou-lhe.

Súbito, lágrimas brotaram nos olhos de Tomoe. Igual a um anjinho, a face parecendo duas maçãs, a boca uma pequena pétala de flor, como um mensageiro de Deus que havia aparecido sem ser anunciado. Lágrimas afluíram e não paravam de escorrer.

O pastor Makoto também começou a chorar. Achegou-se mais e abraçou-a. E ambos choraram. Fazia sete anos que não choravam assim abrindo o coração. Era a primeira vez depois de sete anos...

Sete anos antes, numa fria manhã de junho, às 7h15m, a filhinha Rioco havia partido, repentinamente, indo para os braços do Senhor. Um mês antes do aniversário de um ano de vida.

O lindo vestidinho branco, que Tomoe estava costurando com todo o amor e carinho, acabou não sendo usado. A festinha de aniversário que os avós aguardavam ansiosos não foi realizada. Foi uma perda tão dolorosa que Tomoe adoeceu e voltou para a casa dos pais no Japão. Meio ano depois, o pastor Makoto transferiu-se para o Japão.

O casal acostumou-se completamente à nova vida e eram dias de muita harmonia e felicidade. A lembrança da única filha Rioco permaneceu guardada no fundo do coração. Solidários um para com o outro, nunca mais tocaram no assunto.

Nisto o bebê começou a chorar e Tomoe levou-o para o segundo andar. Ao verificar o fundo da cesta, o pastor Makoto achou algo. Era uma medalha com a imagem de uma santa. No verso estava gravado “Mayumi 1987”. Pensou: “Deve ser o nome da mãe e o ano de nascimento. E como esta imagem é da santa padroeira do Brasil, certamente ela é brasileira”.

Às pressas avisou a esposa que havia encontrado uma pista e saiu pedalando em direção ao hospital. Lá trabalhava uma médica nikkei, a drª Alice, ginecologista muito procurada pelas decasséguis.

Contou-lhe os acontecimentos dessa manhã e a médica disse que não lhe ocorria que tivesse atendido alguém com o nome “Mayumi”, mas foi verificar os prontuários, não encontrando nada.

Duas horas depois, a drª Alice deixou o hospital e foi direto para a casa do pastor Makoto. Examinou o bebê e deixou todo mundo aliviado. Na espaçosa sala onde eram realizados os cultos nos finais de semana havia muitas pessoas. O tufão estava se aproximando e era perigoso andar pelas ruas, mas todos haviam acorrido para prestar ajuda.

As mulheres arrumaram roupas para a menininha que aparentava ter 5 meses e telefonavam para todos os conhecidos decasséguis ou enviavam e-mail para avisar sobre o bebê encontrado. Os homens se dividiram em turmas e partiram em busca de pistas, percorrendo postos policiais, hospitais e consultórios médicos.

O pastor Makoto orou a Deus pedindo que velasse por “Mayumi”.

“Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos”.
                                                                                     Salmos 91.11.

História nº 6 (Parte II) >>

© 2012 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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