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História nº 5 (Parte II): Clayto - Uma história de sangue, suor & samba

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Parte I >>

E foi pulando de emprego em emprego, de cidade em cidade. Como consequência, foi-se distanciando cada vez mais da família no Brasil. A foto da filhinha de 2 anos ele nem chegou a ver. E quando se deu conta, tinha virado professor de samba! Não que ele tivesse planejado isto, foi tudo puro acaso.

Um dia ele estava aguardando o trem, quando avistou na plataforma do outro lado uma estudante colegial de uniforme azul-marinho, longos cabelos pretos presos nos dois lados, ar sereno, uma graça. Na mesma hora quis se comunicar com ela, gesticulando muito, tentando se fazer notar, mas ela parecia embaraçada. Ele procurou chamar atenção criando vários tipos de movimentos com seu corpo ágil e flexível, parecendo uma dança.

O trem chegou em alguns minutos e a estudante acabou embarcando. Mesmo sem saber ao certo se ela havia esboçado um sorriso, ele ficou acenando alegre feito criança.

Nesse exato momento, estava aguardando o trem um senhor de ar distinto, de terno e gravata borboleta. Desde o momento em que viu Clayto na plataforma do outro lado, não conseguiu mais desgrudar os olhos, encantado com os movimentos ágeis do jovem. E achou incrível porque era como se tivesse voltado no tempo, pois via o jovem dançarino como se fosse o Gene Kelly no filme “Cantando na chuva”, sucesso da década de 1950.

Não tinha importância deixar passar o trem, ele queria ficar observando esse Gene Kelly que tinha aparecido na sua frente. Dirigiu-se à outra plataforma e abordou-o. Clayto se esforçou para entendê-lo e se fazer entender. E nesse mesmo dia, ele foi convidado para ser professor de samba na escola de dança de Tom Akashi.


Foram dias gloriosos rodeado por aquelas mulheres todas! Em dois tempos, o espaçoso salão que tinha sido escritório de uma antiga editora de revistas não comportava tanta gente. De jovens funcionárias de escritório a mulheres maduras com jeito de dona de casa, todas elas tornaram-se fãs de Kureito sensei

Clayto não faltava às aulas, era atencioso e paciente com todas e bastante divertido. Contava piadas e todo mundo ria, mesmo sem entender quase nada. Ele sempre terminava com um tapinha no ombro e a expressão “I aíi”, outra coisa que ninguém se dera ao trabalho de entender, mas que era divertido era.

Tom Akashi não se cansava de agradecer aos deuses por ter encontrado alguém para reerguer a sua querida escola de dança que estava pensando em fechar por falta de alunos.

Certo dia, Clayto não apareceu para as aulas da manhã, o que deixou Tom Akashi apreensivo, agora que a escola estava indo tão bem, com aulas em três turnos: manhã, tarde e noite. “E se ele não aparecer até o fim do dia?Vai dar problema.” Sua preocupação aumentava à medida que as horas passavam.


O fato é que Clayto estava gostando de uma menina. Sabe quem? Aquela colegial que havia visto naquela manhã na plataforma da estação. Pois desde aquele dia ele se levantava mais cedo e, antes de ir à escola de dança, ele e a estudante se viam para trocar algumas palavras. Apesar dos quase 3 anos de Japão, ele mal conseguia conversar, mas a menina achava divertido o “I aíi” que ele falava a toda hora. 

Pois naquela manhã Emi-tchan não apareceu e ele ficou preocupado. Deixou passar 2 trens e continuou aguardando, mas nada. Por fim, resolveu sair da estação e começou a rodar o bairro. “Se ao menos eu soubesse onde ela mora, mas é tão reservada, só disse que morava só com a mãe...”. Ele continuou chegando mais cedo na estação na esperança de poder encontrá-la, mas a colegial nunca mais apareceu.


Clayto continuou firme na escola para alívio de Tom Akashi. Um dia, a aula havia terminado quando uma mulher magra de vestido púrpura e sapatos dourados entrou, viu-o no meio das alunas e foi logo perguntando: “Ei, é você o brasileiro que ensina samba?”.

Na mesma hora, ele pôs música e começou a requebrar como se a vida dele fosse só sambar. As alunas soltaram gritinhos e começaram a aplaudir.

A mulher ficou parada no lugar, boquiaberta.

No meio da música, Clayto convidou-a para o meio do salão. A mulher deu uns passos à frente e tentou, mas nada que se parecesse com dança, muito menos com samba. Não fosse a habilidade dele, ambos teriam tropeçado e se estatelado no chão.

 “I aíi”, gritou, rosto suado, terminada a música.

A mulher, sem fôlego, apoiou-se nele e tirou os sapatos.

Clayto pegou a jaqueta e saiu, seguido pela mulher que segurava os sapatos na mão. As alunas, que não tinham arredado pé como se quisessem protegê-lo, lançaram olhares de desagrado umas para as outras. 

Alguns dias depois, Clayto deixou o salão mais cedo e a mulher, que havia começado a frequentar as aulas, ficou retocando a maquiagem até a hora de Tom Akashi fechar o cofre, apagar as luzes e trancar o salão.

Lá fora soprava um vento tempestuoso. A mulher convidou Tom Akashi para um drinque e ele aceitou.

No dia seguinte, quando Tom Akashi entrou no escritório situado no fundo do salão, encontrou o cofre arrombado.

Coincidência ou não, desse dia em diante Clayto não apareceu mais. Ao saberem do sumiço de Kureito sensei as alunas ficaram desesperadas, foi um grande alvoroço. E, coincidência ou não, a mulher de vestido púrpura também não apareceu mais para as aulas de samba.

© 2012 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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