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https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2009/3/10/citizens-of-japanese-origin-in-peru/

Cidadãos de origem japonesa no Peru durante a Segunda Guerra Mundial: uma revisão dos debates atuais - Parte 1

Se existe algo mais fascinante do que a história de um único grupo ou nação, é a história de grupos diversos, sejam estes muito similares ou distintos, que ao se fundir criam um precedente. Este é o caso do episódio das deportações de cidadãos de origem japonesa residentes no Peru aos campos de relocação nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.1

Relações anteriores

A história compartilhada pelo Peru, Japão e Estados Unidos estende-se por muitos anos e aspectos variados. No entanto, vale lembrar que estas relações têm sido geralmente bilaterais.

Os Estados Unidos e o Peru compartilham desde os anos de [Augusto B.] Leguía [presidente peruano nos períodos 1908-1912 e 1919-1930] uma aproximação muito mais evidente política e economicamente. Esta proximidade mantém vigência na atualidade, ao passo que em diversos períodos exerceu uma influência crucial com respeito à modernização, crises, benefícios econômicos e decisões políticas do Peru.

Por outro lado, o Japão e o Peru compartilham de uma história mais recente, originada através dos processos migratórios que tiveram início no século XIX, os quais levaram muitos habitantes do império a se tornarem parte da mão de obra que as fazendas peruanas necessitavam para o desenvolvimento de sua produção agrícola. Este processo, como pode ser visto extensamente na historiografia nikkei2 (??)3, teve início com trabalhadores rurais, mas foi expandindo para os ramos artesanais, comerciais e urbanos. Com o passar do tempo e como resultado de circunstâncias históricas, a comunidade nikkei acabou se transformando em mais uma face compondo a cultura e sociedade peruanas.

Não é menos fascinante a história compartilhada pelo Japão e os Estados Unidos, iniciada com a abertura do sakoku (??) [literalmente, “país fechado” ou “país encadeado”], após a chegada do comodoro americano Matthew Perry em Yokohama em 1854. Isso levou o Japão a iniciar um processo de mudanças que o colocaria pouco mais tarde entre as primeiras potências mundiais e transformaria seus habitantes em cidadãos ávidos para entender e aprender sobre o mundo ocidental. É precisamente a partir da Restauração Meiji que o Japão passará a realizar uma série de alterações políticas correspondentes ao fenômeno mundial de dominação e expansão, processo que culminará com a sua participação na Segunda Guerra Mundial.

É precisamente neste momento da história que os três países em questão compartilham de um episódio sobre o qual é importante e saudável refletir, já que ele é em parte resultado da história política dos países envolvidos, assim como de suas economias, e principalmente da memória vivenciada por suas sociedades.

Primeiros passos

Em 1981, foi formada nos Estados Unidos a Comissão para a Investigação da Relocação e Internamento de Civis em Tempos de Guerra, a qual visava proporcionar os resultados desejados por todas as comissões da verdade, ou seja: o conhecimento dos fatos, o reconhecimento e a compreensão dos acontecimentos ocorridos, e a partir dali – e como foi o caso desta comissão – a oferta de uma desculpa oficial e indenizações civis aos nipo-americanos internados nos campos de relocação durante a Segunda Guerra Mundial. 4

Esta medida foi implementada lentamente. Alguns autores assinalam5 que bem antes de 1981 – desde, pelo menos, 1947 – o governo americano já tinha ciência do seu dever de atribuir indenizações civis, medida que só ocorreria após a criação do Ato de Liberdades Civis em 1988. Entre 1995 e 1999, tem lugar uma intensa campanha convocatória6 efetuada através do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, oferecendo aos mais de 4.000 nipo-americanos faltantes o pagamento correspondente a sua indenização civil (20.000 dólares), e detalhando os esforços do Departamento de Justiça para encontrá-los.

No entanto, foi somente em 1998 que o governo americano estendeu as indenizações para outros grupos além dos “nipo-americanos” 7, encarregando-se de convocar um grupo que havia sido importante para aquele governo na troca de prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial: os japoneses latino-americanos8.

A historiografia nikkei registrou valiosos testemunhos de exilados (sejam aqueles que retornaram ao Peru ou que se estabeleceram nos Estados Unidos), mas existe ainda um vazio na análise do fenômeno em si. Foi meramente conjuntural? Responde a um caráter xenófobo da sociedade peruana daquela época? Era algum tipo de medo infundado? Responde aos interesses econômicos? O que estava em jogo com a proteção de cidadãos de origem alemã, italiana, ou japonesa em um contexto americano? E uma pergunta que é necessária: o que foi feito ou se pode fazer a respeito?

O Peru dos anos 30

É inegável que apesar da sua diversidade e de seu caráter quente e alegre, há momentos da história durante os quais a sociedade peruana foi um tanto arisca com os imigrantes de procedência não-européia, já que, desde os tempos coloniais, a cultura européia é a mais difundida por razões históricas.

Entre folhetos, panfletos e jornais mais sólidos como o diário “La Prensa”, e medidas implementadas pelos governos [militares] de [Luis] Sánchez Cerro [1931-1933] e [Oscar] Benavides9 [1933-1939], nos anos 30 a comunidade nikkei foi foco de ataques com base em justificações irracionais, tais como acusações dos japoneses serem transmissores de doenças, por ser considerada uma raça estranha a qual não se deveria abrir as portas com tanta facilidade, de serem “feios soldados do Império”, e outros problemas que demonstram um repúdio à comunidade – repúdio normalmente conhecido como xenofobia.

De natureza irracional, a xenofobia10 se alimenta com os temores direcionados a um grupo humano visto como diferente, estranho, às vezes fechado. Se existe na realidade uma mínima razão que possa alimentar esses temores, a irracionalidade do repúdio pode tomar forma de ação. Issoi foi exatamente o que ocorreu naquele período com a comunidade japonesa no Peru.

Alguns autores, entre eles Daniel Masterson11, afirmam que antes do ataque japonês a Pearl Harbor qualquer tipo de ataque ou atitude que denotasse hostilidade à comunidade nikkei seria infundado. No entanto, antes da aberta participação do Japão na Segunda Guerra Mundial, já haviam ocorrido ataques à comunidade, e para eles existem fontes tanto fotográficas quanto impressas. Além disso, existem ainda indivíduos que conseguem se lembrar de tais incidentes.

Se bem que um setor da sociedade peruana (seguidores do já mencionado Partido de Sánchez Cerro) antes do começo da Guerra já havia demonstrado sua posição diante à comunidade japonesa, é importante lembrar que não se tratava de uma postura unânime.

O setor oficial, ou seja, a política do Estado, já havia demonstrado certa cautela com respeito às liberdades concedidas à comunidade; medidas que até certo ponto podem ser interpretadas como uma forma de cuidar dos interesses dos cidadãos peruanos comuns.

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Museu da Imigração Japonesa ao Peru “Carlos Chiyoteru Hiraoka”, Associação Peruano Japonesa

Notas:
1. Este artigo é baseado numa palestra apresentada em 6 de novembro de 2008 no XVIII Colóquio Internacional de Estudantes de História da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Meus agradecimentos aos organizadores por terem permitido e proporcionado um debate sobre o tema no seu evento. Também agradeço a Iván Hinojosa, que revisou a primeira e segunda versões, e cujas sugestões levaram a um texto mais preciso. Minha gratidão também a José Ragas por ter me motivado a continuar a investigação e também por seus interessantes comentários e contribuições tanto no Colóquio como fora dele. E também a parentes e amigos que colaboraram na abordagem de tópicos de interesse e que contribuiram com sua visão sobre um tema que é importante e necessário discutir.

2. Com a chegada do Sakura Maru (???.), os autores consideram iniciado o processo de imigração.
Veja: ASSOCIAÇÃO PERUANO JAPONESA. Centenario de la Inmigración Japonesa al Perú 1899 – 1999. (Centenário da Imigração Japonesa ao Peru 1899-1999) Comissão Comemorativa do Centenário da Imigração Japonesa ao Peru. Lima, 2000. FUKUMOTO, Mary. Hacia un nuevo sol. (Havia um novo sol) Lima: Associação Peruano Japonesa do Peru 1997. MORIMOTO, Amelia. Los japoneses y sus descendientes en el Perú. (Os Japoneses e seus descendentes no Peru) Lima: Fundo Editorial do Congresso do Peru. 1999. SAKUDA, Alejandro. El futuro era el Perú. (O futuro era o Peru) Lima: ESICOS 1999. THORNDIKE, Guillermo. Los imperios del Sol. (Os impérios do Sol) Lima: BRASA 1996.

3. O termo é composto pelos kanjis?, que significa “do sol” ou japonês, e ?, que significa linhagem, genealogia; assim sendo, nikkei quer dizer "de origem japonesa", ou seja, os imigrantes japoneses (os japoneses de ultramar) e seus descendentes. Apesar de que em alguns casos também se estenda a denominação aos simpatizantes da cultura japonesa, mesmo aqueles de outras etnias, o presente texto adotará o significado original.

4. BECERRA, Xavier e LUNGREN, Dan. The Original Crystal City (A Crystal City Original).
http://www.aiipowmia.com/inter27/in240207crystalcity.html

5. YOUNG, Michael. "Texas camps were home to Latin American Japanese internees during WWII" (“Campos no Texas foram lar para japoneses latino-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial”) no The Dallas Morning News. Texas, 23 de maio, 1999.

6. UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE. Ten year program to compensate japanese americans interned during World War II closes its doors (Programa de dez anos para indenizar nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial fecha suas portas).
http://www.usdoj.gov/opa/pr/1999/February/059cr.htm

UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE. Justice Department seeks help in locating potential japanese-american redress recipients before the program closes in August 1998 (O Departamento de Justiça pede ajuda para encontrar possíveis recipientes de indenizações para nipo-americanos antes que o programa termine em agosto de 1998).
http://www.usdoj.gov/opa/pr/1997/January97/041cr.htm

UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE. Justice Department seeks help in locating more than 4000 potential japanese - american redress recipients (O Departamento de Justiça pede ajuda para encontrar mais de 4.000 possíveis recipientes de indenizações para nipo-americanos).
http://www.usdoj.gov/opa/pr/Pre_96/June95/321.txt.html

7. Com respeito a esta terminologia, é importante clarificar que para a imprensa e historiografia americanas, um “nipo-americano” é um nikkei estabelecido nos Estados Unidos. Os demais são “japoneses latino-americanos”. Ainda que se discorde do emprego de tal terminologia, tendo em vista que todos aqueles originários das Américas são americanos, para facilitar a leitura do texto, assim como das citações às referências, se entende que o termo “nipo-americano” se refere apenas aos japoneses dos Estados Unidos.

8. UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE. Japanese Latin Americans to Receive Compensation for Internment During World War II. (Japoneses Latino-Americanos Receberão Indenização por Internamento Durante a Segunda Guerra Mundial.)
http://www.usdoj.gov/opa/pr/1998/June/276.htm.html

9. MORIMOTO, op. cit. pp. 98-100, SAKUDA, op. cit. 211-225. (Sakuda dispõe de uma grande quantidade de fontes jornalísticas da época e transcreve notas inteiras dos jornais)

10. Utilizada de acordo com o Dicionário da Língua Espanhola, ou seja: Ódio, repugnância, ou hostilidade contra estrangeiros.

11. MASTERSON, Daniel. The Japanese in Latin America. (Os Japoneses na América Latina) Chicago: University of Illinois Press. 2004. p. 154.

* Este artigo foi publicado graças ao convênio entre a Associação Peruano Japonesa (APJ) e o Projeto Descubra Nikkei. Este artigo foi publicado originalmente na revista Kaikan Informativo da APJ, Nº 39, dezembro de 2008.

© 2008 Yukyko Takahashi Martínez

Japonês Peru Segunda Guerra Mundial
About the Author

Yukyko Takahashi Martínez é historiadora formada pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). Ela trabalhou como assistente de investigações do Museu Arqueológico, Etnográfico e Histórico Basco, assim como em diversos projetos da PUCP, onde também atua como orientadora. Ela também cursou seminários no Centro de Estudos Orientais da PUCP, na Universitat Pompeu Fabra de Barcelona, e na Universidade Pablo de Olavide em Sevilha.

Atualizado em março de 2009

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