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O Mito Do Eterno Retorno

Os dados estatísticos de 2007 revelam que mais de 300 mil brasileiros estão trabalhando no Japão, ultrapassando os quase 250 mil japoneses que vieram para cá nesses cem anos do início de do processo de imigração ao Brasil.

Esses mesmos dados calculam que perto de 30% provavelmente não mais retornarão ao Brasil, justamente eles que seguiram com a finalidade de “ganhar dinheiro e retornar” à terra natal.

Interessante: essa mesma história já foi vivida por seus ancestrais que, pressionados pelas condições adversas de um país que tinha pressa em modernizar-se como os países capitalistas do ocidente, consideraram promissoras as possibilidades além-mar, devidamente reforçadas pelas propagandas das empresas colonizadoras.

Certamente, a maioria dos emigrantes que deixa a terra natal em busca de melhores condições sócio-econômicas carrega na alma a esperança de retorno. Mesmo sem saber quando isso será possível, ou até mesmo se será possível, é um alento que o ajuda a aliviar a dor da separação.

Nesta oportunidade queria tratar sobre o tema do retorno, ou melhor, o mito do retorno, sempre recorrente nos diferentes momentos dos movimentos populacionais, perceptível também entre os imigrantes japoneses ao Brasil e entre os nikkeis ao Japão. Queria também me referir aos desdobramentos históricos desse sentimento em alguns momentos da comunidade nipo-brasileira.

Em 1908, chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil

Provavelmente muitos japoneses, quando embarcaram em direção ao Brasil, não faziam idéia do que significava dar meia volta no mundo para trabalhar nos cafezais. Ou melhor, tinham uma idéia equivocada: acharam que, depois de cerca de cinco anos de trabalho intenso, teriam juntado poupança para retornar ao Japão.

Este sentimento perpassa a história da maioria dos imigrantes japoneses do Estado de São Paulo. Ao deparar com a realidade totalmente adversa, admitiram alargar o tempo de estada no país, mas não abandonaram o sonho. Essa postura vai influenciar profundamente as relações que esses núcleos de colonização vão estabelecer com o entorno e em sua organização interna. Tratava-se de uma vida provisória, uma prova de fogo para garantir um futuro promissor no Japão.

Podemos dizer que, para a maioria das famílias, o final da Segunda Guerra Mundial marca a desistência desse sonho, dessa postura, melhor dizendo, da preservação da cultura e da organização social com os olhos voltados para o Japão.

Nesse contexto de período pré-guerra é interessante ressaltar a política adotada pelo governo japonês, a partir de meados da década de 1920, aos interessados em sair ao exterior. Não só de estimular a emigração para o Brasil (arcando com as despesas de viagem), como também de fortalecer a ação das companhias de colonização, oferecendo condições de fixação definitiva em terras brasileiras e garantindo forte relacionamento com os órgãos da pátria-mãe.

Nesse sentido, podemos citar, dentro dessa estrutura, destaque para a BRATAC (Brasil Takushoku Kumiai) – Sociedade Colonizadora do Brasil Ltda., em São Paulo, criada em 1929, responsável pela organização e administração das colônias de Bastos, Tietê (atual Pereira Barreto), Alianças e Três Barras (atual Assai, norte do Paraná), envolvendo uma área total de 177.698 hectares.

Na região norte do Brasil, nessa ocasião, outras iniciativas empresariais trouxeram novos imigrantes japoneses, graças aos acordos de concessão de terras pelos governos do Pará (1,3 milhão de hectares) e do Amazonas (1 milhão de hectares).

Percebe-se que, esse movimento envolvendo japoneses para trabalhar como colonos nas fazendas paulistas de café, com o passar dos anos, ganha importância estratégica do governo e dos empresários japoneses.

Apesar disso, a grande parte nunca abandonou o sonho de retorno. Trabalharam sol a sol, suportando todas as agruras para poder retornar vencedores e orgulhosos como leais súditos do império japonês. Foi um sonho que poucos conseguiram concretizar.

Na década de 1980, mudanças cruciais

A trajetória dos imigrantes japoneses seguiu seu curso e, nos anos 80, pairava no ar certa “unanimidade” entre os líderes da comunidade nipo-brasileira da “assimilação completa” dos descendentes de japoneses. Os números de casamento interétnicos apontavam para esse caminho inexorável.

Os mais conservadores olhavam com certa melancolia para os jovens descendentes que abandonavam o aprendizado da língua japonesa. “A cultura japonesa trazida por nós, imigrantes, e preservada com cuidado, nos próximos anos estará esquecida pela nova geração”, vaticinavam.

No entanto, um fenômeno novo ganha intensidade no final da década de 1980 – o movimento dekassegui, tem as mesmas motivações que trouxeram nossos antepassados para o Brasil (trabalhar, poupar e retornar). Primeiro foram os isseis (nascidos no Japão), depois dos nisseis, e a partir da década de 1990, a legislação japonesa abriu oportunidades para os mestiços e cônjuges sem descendência japonesa.

O motivo econômico – desemprego ou dívidas para saldar – foi a principal alavanca para seguir ao Japão e aceitar empregos no chão das fábricas. Ou ainda, a oportunidade de garantir uma poupança para, finalmente, conquistar a independência profissional.

Teriam sido somente essas justificativas, vamos dizer, puramente econômicas para deixar tudo para trás e seguir para o outro lado do mundo? Com certeza os motivos econômicos constituem justificativas incontestáveis perante à família e sociedade e, sem dúvida, exerceram papel de grande relevância, mas acredito importante ressaltar outros pontos.

Primeiro item: a oportunidade de, finalmente, poder conhecer a terra dos seus ancestrais. Nesse sentido, no contexto desse movimento no país, o capítulo “Japão” tem um ingrediente especial da vontade de “retornar” e conhecer a pátria de seus pais e avós.

Provavelmente, esse componente estimulador foi captado pelas autoridades japonesas que, embora não admitam abertamente, optaram por abrir as portas para trabalhadores “sangue do meu sangue” e conhecedores da “cultura japonesa”, e acabar com os trabalhadores ilegais do leste asiático ou de outros países do Oriente. Com o passar do tempo, constatou que esses itens não resolveriam totalmente os problemas de choque cultural, tanto para o lado brasileiro como japonês.

Voltando ao primeiro item, juntaram-se ao movimento dekassegui, principalmente na primeira década, pessoas que sempre nutriram o sonho de conhecer o Japão, mas não dispunham de recursos financeiros para tal. São pessoas fora das estatísticas oficiais: trabalharam certo período e, depois, fizeram questão de gastar toda essa poupança fazendo turismo pelo país.

Para muitos, representou a oportunidade para, finalmente, livrar-se, ou distanciar-se dos problemas familiares ou conjugais. A necessidade de melhorar a condição salarial foi uma desculpa, mais do que convincente, para resolver algum desses desajustes.

Hoje em menor porcentagem, mas sabe-se que nos primeiros anos, as tragédias vividas, no Brasil, por famílias abandonadas foram amplamente divulgadas pelos meios de comunicação. O marido que foi ao Japão deixando mulher e filhos, desaparece depois de alguns meses, para desespero de todos. Em alguns casos, descobriu-se, mais tarde, que o “fujão” teria constituído outra família no Japão.

Famosos na sociedade brasileira por seu comportamento discreto (às vezes, exageradamente contido!), muitos desses descendentes de japoneses enxergaram a possibilidade de mudar de vida. Para muitos homens e mulheres, jovens ou adultos, foi a oportunidade de livrar-se das amarras sociais e assumir um estilo de vida diferente no Japão.

No cotidiano, convivência com os japoneses

“Nada será como antes”, cantava Elis Regina. Provavelmente muitos dos dekassegui não analisaram com profundidade o que representaria para a vida deles, ir trabalhar em outro país, com a perspectiva de “um dia retornar”. Fato é que, viver do outro lado do mundo, viver o cotidiano dos japoneses e experimentar uma cultura diferente, provocou profundas mudanças na vida de cada um deles.

A despeito das experiências individuais, para a maioria deles significou desmistificar o Japão que aprendeu com os antepassados e “atualizar” o Japão atual – um país capitalista, como outro qualquer, e que ele, mesmo sendo descendentes de japoneses, só têm valor enquanto mão-de-obra produtiva. Um Japão bem diferente daquela imagem transmitida por nossos pais e avós durante toda sua vida no Brasil. Muitos dekasseguis relutaram até aceitar essa cruel realidade. Alguns classificam os japoneses como frios. Alguns japoneses classificam os nikkeis como caipiras.

É interessante que esses brasileiros no Japão, vivendo problemas de adaptação, como seus ancestrais nos primeiros tempos de Brasil, lançam mão dos mesmos esquemas. Já há vários anos, observa-se o crescimento e fortalecimento das “colônias” de brasileiros buscando acolhimento e proteção de um ambiente, para ele, considerado “hostil”.

Repete-se aqui, como em outros países de concentração de trabalhadores brasileiros, o mesmo comportamento de valorização das “coisas brasileiras”, como se não pudessem sobreviver sem os produtos nacionais, como por exemplo, arroz com feijão, feijoada, bife, pastel, farinha de milho, mandioca, etc, etc. Por uma questão de sobrevivência psico-sócio-cultural passam a exacerbar em coisas mínimas da terra natal que antes nunca deram devida importância. Podemos citar, por exemplo, a participação em desfile de carnaval. Sabemos que, no Brasil, são poucos os descendentes de japoneses que desfilam nas escolas de samba. O mesmo ocorre com a prática de capoeira, música sertaneja, entre outros.

Não poderia deixar de lembrar outros aspectos que hoje concentram as maiores preocupações: o alto índice de crianças e jovens fora da escola, numa comunidade que, no Brasil, era destacada pelo alto índice de escolaridade. Fica aqui um questionamento: será que os pais, desencantados com as expectativas de um diploma universitário (ou seja, apesar do diploma, viraram dekassegui!), chegaram à conclusão que seus filhos não precisam “perder” tempo nos bancos escolares? Ou será falta de dinheiro (ou dó de gastar o rico dinheirinho, motivo da vinda ao Japão)? Ou falta de planejamento com o futuro – a indecisão de permanecer no país ou retornar ao Brasil?

Culpa dos pais ou das autoridades, o fato é que os jovens, filhos de brasileiros protagonizam um dos mais altos índices de ocorrências policiais entre as comunidades de estrangeiros, contrastando com a imagem do Brasil marcada pela virtuosa correção de jovens e adultos.

Pois é: o que terá acontecido (ou está acontecendo) com esses dekasseguis?

De volta ao Brasil, nada será como antes

No Brasil, o movimento dekassegui tem provocado mudanças na comunidade nikkei, criando situações inusitadas e interessantes.

Atualização da cultura japonesa através das informações trazidas pelos dekasseguis ao Brasil, seja em termos de hábitos, esportes, língua, comportamento, alimentação, entre outros itens.

Estatísticas sobre o contingente populacional japonês vindo ao Brasil indicam que a maioria chegou antes da Segunda Guerra Mundial (cerca de 188 mil), trazendo uma cultura do Período Meiji (1888/1912) que ficou congelada ao longo dos anos. Ao relacionar dos imigrantes japoneses com esse período, dependendo da forma como for colocada, denota “atraso” cultural, ou ressalta as qualidades de um grupo que conservou os valores genuinamente japoneses sem ser “contaminado” pelas posturas “modernizantes” (principalmente após a derrota na Segunda Guerra).

Entre essa “revitalização” promovida pelos dekasseguis podemos citar o sumô, um esporte cultivado pela geração pioneira nos núcleos de colonização. A dispersão decorrente da urbanização provocou uma redução de praticantes e admiradores dessa prática. No Japão, muitos desses brasileiros aprenderam a apreciar o sumô (que ainda continua sendo um esporte nacional) e, de volta ao Brasil, continuam acompanhando pela televisão.

Depois da vivência de alguns anos no Japão, esses dekasseguis também reforçam alguns elementos da cultura globalizada: a moda da cultura japonesa, a febre do anime e mangá, taiko, e outros apetrechos tradicionais japoneses.

Se nos anos 80, previa-se o crescente aumento do casamento interétnico, os dekasseguis provocaram o crescimento do casamento entre nikkeis. E, o mais interessante disso, é que essas uniões têm provocado o intercâmbio entre as comunidades nipo-brasileiras de diferentes pontos do país: é comum o casamento entre nikkeis de diferentes estados, ou cidades, da federação. Por exemplo, alguém de São Paulo casar-se com alguém de Belém, capital paraense localizada distante 2.971 quilômetros! Trata-se de um fenômeno que dificilmente teria ocorrido se continuassem morando no Brasil.

Outra constatação é que o retorno desses nikkeis ao Brasil, não tem representado, necessariamente, substancial crescimento ou fortalecimento das entidades nipo-brasileiras, como acreditaram muitos dirigentes no início do movimento. O que se percebe, pelo contrário, muitos dekasseguis deixaram de comparecer a essas atividades sociais.

Será que ainda não conseguiram se livrar de uma espécie de “preconceito” tão evidente nos anos 80? Ou seja, uma cisma que marcou profundamente os primeiros anos desse movimento, no Brasil e o Japão, decorrente dessa ligação étnica de ambas as partes. Nessa época, havia a idéia de um “comercio de gente”, formado por pessoas que se sujeitavam a realizar serviços desprezados pelos trabalhadores japoneses.

No Japão, acusavam os “emigrantes” de terem abandonado o país no momento em que mais se precisava da força de trabalho deles, que saíram para o exterior atrás do “dinheiro”. Uma acusação grave, mas ao mesmo tempo destituída de fundamentos históricos. Enfim, que os emigrantes teriam “desertado”, abandonado o país à própria sorte e, agora, seus filhos, retornavam ao Japão, “derrotados” e dispostos a trabalhar em atividades de pouco “prestígio”. Aliás, nos primeiros anos do movimento, alguns dekassegui confessaram terem sido rechaçados pelos parentes do Japão. Talvez por vergonha da vizinhança e preocupação com possíveis pedidos de ajuda ou cobrança de coisas do passado!

Aqui, no Brasil, evidentemente que não se cometeu esse equívoco que em termos de julgamento desses trabalhadores. Mas, o fato de existir um membro da família que, em dificuldades, apelou para o trabalho “pesado, sujo, perigoso” no Japão provocou um indisfarçável sentimento de rejeição. Fato é que, mais tarde, com o “sucesso” financeiro da experiência, os preconceitos foram abrandados até porque ter familiares trabalhando no Japão virou comum a todos nipo-brasileiros!

Ou, permitam-me a outra pergunta: será que eles não se sentem acolhidos numa entidade que não considera as dificuldades enfrentadas pelos dekasseguis como um problema da comunidade? Ou seja, pela entidade que considera a questão dekassegui um problema de foro individual ou familiar?

O fato é que, até hoje, são poucas as entidades nipo-brasileiras que assumiram a questão dekassegui como uma das prioridades e um problema social a ser resolvido por toda comunidade. Acredito que, se houvesse um esforço conjunto, como aconteceu nos tempos pioneiros da imigração japonesa, muitas das questões poderiam ser encaminhadas para uma solução ideal.

Enfim, são alguns aspectos que desejava apontar em relação aos dekasseguis e ao mito do retorno envolvendo Brasil-Japão. São pontos que perpassam pela questão da identidade dos nipo-brasileiros e, sem dúvida, são instigantes matérias-primas aos dedicados estudiosos.

 

* Célia Abe Oi foi palestrante na mesa intitulada "A vida dinâmica dos migrantes entre Brasil e Japão—Perspectivas no Brasil" no Simpósio – 100 anos de Imigração Japonesa: As múltiplas identidades da Comunidade Nikkei realizado pelo Discover Nikkei em São Paulo no dia 20 de Setembro de 2008.

© 2008 Célia Abe Oi

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Sobre esta série

Uma série de artigos de palestrantes do Simpósio Descubra Nikkei - "100 Anos de Imigração Japonesa: As Múltiplas Identidades da Comunidade Nikkei", em São Paulo, em 20 de setembro de 2008.

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About the Author

Célia Abe Oi é jornalista e historiadora. Trabalhou em periódicos ligados a comunidade nikkei, foi editora chefe da parte em português do jornal Diário Nippak e contribuiu em outros jornais. Editou diversas publicações, entre elas o Guia da Cultura Japonesa e os livros Beisebol – histórias de uma paixão e Piratininga, 50 anos Uma História da geração Nissei. Entre 1998 e 2007 atuou como diretora executiva do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em 2008 atuou em diversos projetos no centenário e foi uma das curadoras da exposição O Japão em Cada um de Nós.

Atualizado em novembro de 2008

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