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Capítulo 3 Rua Conde e arredores — os rumores da guerra. Desassossego em tempos de paz. A restauração da ordem - parte III

Mesmo depois que a principal instituição de ensino da comunidade japonesa, o Grupo Escolar Taishō, se mudou para a rua São Joaquim, o bairro japonês continuou a crescer nos arredores da rua Conde. Os anos trinta e quarenta haviam sido, aliás, os mais prósperos da sua existência.

“Foi quando a comunidade formada pelos imigrantes começou a se erguer da situação de pobreza em que se encontrava, entre os anos de 1914 e 1915, que os moradores da rua Conde ‘subiram a ladeira’ e começaram a se instalar nas ruas Conde do Pinhal, Tabatingüera, Irmã Simpliciana e Conselheiro Furtado — que vivia sua fase de maior prosperidade” (HANDA, 1970, p. 512)

O número de japoneses e descendentes na rua Conde e arredores à época girava em torno de 600 indivíduos (idem, pp. 572-573). Ao largo da rua, já havia uma quantidade razoável de lojas japonesas em funcionamento. Através dos anúncios publicados nos jornais da época, podemos enumerar, além da Casa Nakaya, que ocupava um edifício de cinco andares logo na entrada da rua, e da Pensão Ueji — considerado o primeiro hotel gerido por japoneses —, os seguintes estabelecimentos comerciais: o hotel Tokiwa, o restaurante Aoyagi, a Clínica Dentária Murakami, a Clínica Dentária Yamato Kinjō, a Casa Kunii, a loja de armas Watanabe, a Casa Hase e a loja Tsunehachirō Endō, dentre outros.

Rua Conde e arredores (Clique para aumentar)

O número de japoneses vivendo na zona urbana de São Paulo em 1933 já atingia cerca de 3 mil indivíduos ou 600 famílias (Epopéia, p. 127). Desses, a maior parte era formada por indivíduos que abandonaram as fazendas entre os anos de 1917 e 1918 e se instalaram nos arredores da rua Conde. Entre os motivos, destaca-se o fato de que a região era próxima do centro de São Paulo, onde os empregos eram mais fáceis, os aluguéis eram mais baratos e os principais órgãos de representação da comunidade japonesa situavam-se ali perto (p. ex. o Consulado Geral e os escritórios da KKKK e da BRATAC). Os pontos onde os japoneses eram mais numerosos ficavam entre as ruas Fagundes, Galvão Bueno e dos Estudantes, a oeste da Conselheiro Furtado. A existência de instituições japonesas de ensino nos arredores foi um dos fatores que atraiu os japoneses para o bairro da Liberdade anos mais tarde.

Já nos anos 30, Oscar Araújo — ex-aluno do sociólogo Donald Pierson (da escola de Chicago de sociologia urbana) na Escola de Sociologia e Política — demonstrava interesse no bairro japonês formado nos arredores da rua Conde. A descrição a seguir, feita por Oscar Araújo, ilustra o modo como os brasileiros do final dos anos 30 enxergavam a região:

O comercio, neste trecho, é feito em geral por japoneses, emprestando ao ambiente um cunho oriental bastante curioso. Alí são encontrados, com facilidade, prdutos tipicos, como o “Aji-no-moto” ou o “Caril Shinyo”, importados diretamente e toda sorte de bijuteria delicada e interessante, que só o japonês sabe executar com tanta perfeição e habilidade. E os anuncios e as placas dos estabelecimentos comerciais? Escritos, em parte, com os caracteres adotados no País do Sol Nascente, emprestam ao ambiente um cunho especial. Aqui é uma taboleta de uma penção japonesa, alí de um hotel, acolá de um barbeiro ou de um tintureiro. De tudo encontramos: quitandas, leiterias, confeitarias, marcenarias, sapatarias, farmacias, livrarias e até casa bancaria, sempre, com empregados e proficionais japoneses ou filhos de japoneses. (ARAÚJO, 1940, p. 237)

Do trecho acima depreende-se que já na época a rua Conde e seus arredores revelavam as feições de um bairro japonês, a ponto de atrair a atenção dos pesquisadores locais. Em 2 de fevereiro de 1942, foi repentinamente expedido um decreto exigindo a evacuação de todos os nacionais japoneses das redondezas, por razões de segurança.

Antes mesmo, em 1937, com a consolidação do Estado Novo1 sob a égide do presidente Vargas, as ideologias pró-assimilação forçada já começavam a tomar fôlego, ameaçando a tranqüilidade tanto de japoneses como de italianos e alemães (pertencentes ao chamado “Eixo”) (SUMIDA, 2000, pp. 127-129).

Em dezembro de 1938 todas as escolas de língua estrangeira haviam sido fechadas. Dois anos mais tarde (janeiro de 1940), foram suspensos os serviços de registro de estrangeiros e todos foram obrigados a tirar a Certidão de Estrangeiro. A proibição dos jornais em língua estrangeira veio em agosto do ano seguinte. Essa era a situação em que se encontravam os japoneses radicados no país quando estourou a Guerra do Pacífico, em dezembro daquele ano. Feita a declaração oficial de guerra, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com o Japão em janeiro de 1942, fechando-se o Consulado e os demais órgãos diplomáticos japoneses no país. Em 6 de setembro do mesmo ano foi realizada uma nova varredura nos arredores da rua Conde com o fito de evacuar todos os indivíduos de ascendência nipônica, incluindo aqueles que haviam nascido no Brasil. Como no dia 3 de julho todos os representantes diplomáticos japoneses haviam sido repatriados, não havia ninguém capaz de intervir em favor dos imigrantes e seus descendentes.

M.E. (natural de São Paulo, nascido em 1922), que à época trabalhava na Livraria Endō (onde eram comercializados livros, discos e material didático japoneses), situada à rua Bonita (atual Tomás de Lima, rua que corta a Conde de Sarzedas), nos dá o seguinte depoimento:

“Acho que foi em 1942 — o DOPS expediu uma ordem exigindo que todos deixássemos a rua Conde dentro de vinte e quatro horas. Eu e meu irmão mais velho fomos até a polícia e explicamos pra eles que nós dois éramos brasileiros, nós tínhamos até cumprido o serviço militar, mas o policial disse que não, que ‘se tem cara de japonês, é japonês’, aí não teve jeito. A gente foi obrigado a fechar a loja e ir embora...”.

Antes do fechamento, o Consulado Geral do Japão havia distribuído a todas as casas comerciais e às famílias mais importantes da comunidade panfletos exortando os japoneses a “suportarem a situação com dignidade, como cabe a um povo elevado” — mas, impedidos de falar japonês, a rua Conde só calava, os japoneses rareando cada vez mais (ACAL, 1996, p. 31). As prisões de nikkeis não cessavam; os isseis que exerciam cargos de liderança dentro da comunidade saíam sempre munidos de roupa íntima e toalha, às vezes até de pó dentifrício e escova dental, pois nunca se sabia se iam ser presos naquele dia ou não. No fim, quase não se viam mais japoneses na rua Conde.

Todos os imigrantes que tinham ligação com o Eixo foram forçados a levar uma vida de privações nesse período. Hoje, sabe-se que a maioria dos nikkeis acreditava que o Japão havia vencido a guerra. No dia 6 de junho de 1945 o Brasil declarou guerra ao Japão, e no dia 15 de agosto o Japão se rendeu. Isso feito, a comunidade japonesa mergulhou no período de agitações provocado pela cisão entre vitoristas e derrotistas, símbolo que marca o início do pós-guerra.

E o que foi feito dos japoneses da rua Conde? O principal efeito do decreto foi redistribuir os japoneses em bairros como a Vila Mariana, Saúde e Jabaquara — razão pela qual até hoje esses bairros concentram um grande número de descendentes. Houve quem retornasse ao bairro da Liberdade e aos arredores da rua Conde, como constatou o autor em entrevistas com alguns ex-moradores. S.A., que hoje é dona de uma farmácia na Galvão Bueno, conta que antes da guerra sua família gerenciava uma pousada na rua Conde do Pinhal. Com a publicação do decreto, a família se mudou para a Vila Mariana, mas tão logo a guerra terminou retornaram à Galvão Bueno, onde abriram um restaurante. Y.K., que até 2000 (mais ou menos), era dono de um armazém na Conde de Sarzedas, conta que foi para Uraí, no Paraná, quando soube do decreto, mas que vinha sempre para o Mercado Municipal em São Paulo transportando cereais, até retornar definitivamente para a cidade em 15 de agosto de 1945. De volta à rua Conde, viu um cartaz com os dizeres “A grande vitória do Japão”, conta.

A boa nova só veio em 1948, quando o nissei Yukishige Tamura — nascido nos arredores da rua Conde, ex-aluno do Grupo Escolar Taishō — foi eleito vereador da cidade de São Paulo. Anos mais tarde, Tamura seria eleito deputado estadual por São Paulo e deputado federal.

O primeiro cinema japonês a contar com qualidade profissional — o Cine Niterói —, inaugurado no bairro da Liberdade em 1953, mesmo ano da chegada dos primeiros imigrantes do pós-guerra a bordo do navio holandês Tjisadane (51 pessoas), deu margem ao surgimento de um bairro japonês igual ao da Conde de Sarzedas (NEGAWA, 1998, p. 243; 2001, p. 75; 2006, pp. 131-134). As lojas que se instalaram nos arredores do cinema esperando atrair os clientes que vinham para ver o cinema acabaram transformando a Galvão Bueno no centro do novo bairro japonês. Falaremos mais sobre a rua Galvão Bueno logo a seguir.

Parece-me que a rua Conde manteve-se tanto ou mais vigorosa do que a Galvão Bueno até meados dos anos 70. Nos jornais da época, observa-se que, em comparação com a recém-construída Galvão Bueno, “a rua Conde — menina dos olhos de outrora — vem vivendo uma fase de revitalização desenfreada, conseqüência do alargamento das ruas e da modernidade entrante que se traduz na grande quantidade de estabelecimentos novos” (Nippaku Mainichi Shimbun, 9 de julho de 1969). O mesmo jornal ainda sugere uma atmosfera de co-existência pacífica e co-prosperidade entre as duas.

S.O., que mais tarde se tornaria presidente da Associação dos Comerciantes da Liberdade (ACAL), abriu em 1971 uma joalheria na Conde de Sarzedas. A isso, soma-se ainda o fato de que o Jornal Paulista, um dos três grandes jornais em língua japonesa no Brasil, manteve — até se fundir com o Nippaku Mainichi Shimbun em março de 1998, dando origem ao Jornal Nikkey — a sua sede, redação e imprenta na rua Oscar Cintra Gordinho, que cruza com a ladeira da Conde de Sarzedas bem na altura do sopé. Dos fatos relacionados acima, depreende-se que as duas mantiveram essa coexistência pacífica durante um período prolongado de tempo.

Com a vinda dos imigrantes coreanos para as cidades, decorridos alguns anos desde o início da tal corrente migratória em 1963, a rua Conde passou a abrigar um grande número de indivíduos daquele país a partir da década de 70. S.C., que veio da Coréia para o Brasil em 1972, conta que num prédio antigo que há nas imediações e cujos moradores são quase todos coreanos era possível ouvir a noite toda o som das máquinas de costura, pois muitos coreanos dedicavam-se ao fabrico de tecidos. O mesmo S.C. conta que já nessa época a Conde de Sarzedas adquirira uma atmosfera de periculosidade porque havia se transformado numa espécie de “zona da luz vermelha”, onde as prostitutas perfilavam-se desde o entardecer pelas calçadas. É de peculiar interesse que ambos os enclaves de origem étnica — aquele formado pelos japoneses, mais calejados, e o outro, formado pelos “novatos” (os coreanos) — tenham resistido ao tempo numa atmosfera de segregação ou, pelo menos, de coexistência pacífica.

Notas:

1. “Estado Novo” é o nome dado ao governo ditatorial imposto por Getúlio Vargas, “que tinha no salazarismo português a sua fonte de inspiração, sendo ao mesmo tempo um reflexo bastante claro da expansão do fascismo em terras européias e além” (SUMIDA, 2000). Ainda seguindo as palavras de Sumida, “a exortação nacionalista é uma das peculiaridades do governo Vargas”, e “através do estabelecimento de um governo ditatorial por meio da revolução, seu conteúdo reforça a idéia de unificação nacional, enfatizando nas aparências uma maior participação popular nos assuntos de estado e construindo sua política estatal em torno da noção de ‘brasilidade’ como conhecimento comum do povo” (pp. 127-128). Com relação aos assuntos de imigração durante o governo Vargas, Sumida escreve: “com o avanço do nacionalismo, a política estatal passa a incorporar a estratégia de assimilação forçada do imigrante, sendo realizado em 1938 a assembléia deliberativa sobre assuntos de imigração” (p. 128).

Referências.

ACAL (1996), Liberdade. São Paulo, ACAL.

ARAÚJO, Oscar Egidio. (1940), “Enquistamentos étnicos”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo LXV. pp. 227-246.

HANDA, Tomoo (1970), Imin no seikatsu no rekishi — Burajiru nikkeijin no ayunda michi [O imigrante japonês — história de sua vida no Brasil]. São Paulo, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.

NEGAWA, Sachio (1998), “São Paulo tōyōgai no keisei to hen’yō ni kan suru note” [Notas sobre a formação e transformação do bairro oriental em São Paulo]. Anais do IX Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa e I Encontro Latino-Americano, pp. 242-249

――――― (2001), “Um comerciante japonês: história de vida no bairro oriental de São Paulo”. Estudos Japoneses 21. pp. 101-115.

――――― (2006), “Multi-ethnic toshi São Paulo ni okeru ‘Nihon bunka’ no hyōshō — tōyōgai ni okeru shin-dentō gyōji wo chūshin ni” [Um símbolo da ‘cultura japonesa’ numa São Paulo multi-étnica — em torno das ‘novas comemorações tradicionais’ do bairro oriental]. Heisei 16- 17-nendo Kagaku Kenkyūhi Hojokin (Kiban Kenkyū C) Kenkyū Seika Hōkoku-sho — gendai Burajiru ni okeru toshi mondai to seiji no yakuwari [Relatório referente às pesquisas realizadas nos anos de 2004 e 2005 com os subsídios oferecidos pelo Fundo de Pesquisas em Ciência (pesquisa de base C) — o problema das cidades no Brasil contemporâneo e o papel do governo]. pp.129-140

SUMIDA, Ikunori (2000), Shin-shidōsha Vargas [Vargas: o novo líder]. In: Norio Kinshichi & Ikunori Sumida, Burajiru kenkyū nyūmon — shirarezaru taikoku 500-nen no kiseki [Introdução aos estudos brasileiros — 500 anos de uma grande nação]. Kyōto, Kōyō Shobō. pp.121-129

Artigos de jornal:
“Yosōi mo arata ni — yomigaeru Conde: São Paulo nihonjingai shin-chizu” [Agora em nova roupagem — a ressurreição da rua Conde: um novo mapa dos bairros japoneses em São Paulo]. Nippaku Mainichi Shimbun, n.º 5085 (9 de julho de 1969).

© 2007 Sachio Negawa

Brasil Conde de Sarzedas Street (rua) Japantowns Liberdade São Paulo (São Paulo)
Sobre esta série

O bairro japonês de São Paulo — sempre que eu me vejo imerso nele, cercado de caos por todos os lados, invariavelmente eu sinto a minha mente como que vazia por um instante e me pergunto: “por que teriam esses japoneses atravessado os mares e construído, do outro lado do mundo, um bairro só deles?”.

Nesta coluna, eu gostaria de dividir com os leitores a história e a imagem contemporânea dos bairros japoneses que eu visitei, procurando não me afastar da pergunta que abre este artigo.

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About the Author

Sachio Negawa é professor-assistente dos departamentos de Tradução e Línguas Estrangeiras da Universidade de Brasília. Mora no Brasil desde 1996. É especialista em História da Imigração e Estudos Comparativos entre Culturas. Tem-se dedicado com afinco ao estudo das instituições de ensino nas comunidades japonesa e asiática em geral.

Atualizado em março de 2007

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